segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Jornal Estado de Minas - Domingo, 13 de dezembro de 2009


 Patrimônio
História volta aos trilhos
Força-tarefa firma convênio com prefeituras para garantir a recuperação de estações de trem entregues ao abandono e à degradação
Junia Oliveira





O apito dos trens, o burburinho do entra e sai dos vagões, acenos de despedida e abraços de reencontro ficaram num passado distante de muitas cidades do interior de Minas depois da desativação dos trens de passageiros. Com o fim desses personagens célebres das Gerais, muitas estações foram condenadas ao abandono e à degradação. Mas a história do palco de chegadas e partidas das locomotivas que desafiaram as sinuosas montanhas para ligar lugarejos, cidades e pessoas de um ponto ao outro acaba de ganhar um novo capítulo. A Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico, o Ministério Público Federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) firmaram termo de compromisso com cinco municípios mineiros para a proteção e a preservação dos bens ferroviários. As prefeituras terão prazo de quase dois anos para recuperar e dar uma destinação sociocultural às estações de Miguel Burnier (em Ouro Preto) e Lobo Leite (em Congonhas), ambas na Região Central, Campanha (Sul de Minas), Lassance (Norte) e Chiador (Zona da Mata).

As administrações assumiram a obrigação de fazer obras emergenciais e de restaurar os prédios. Até o início de abril, as prefeituras devem providenciar o tombamento dos imóveis em âmbito municipal e elaborar os projetos de restauração dos prédios, que serão apresentados ao Iphan. O instituto terá prazo de 90 dias, a partir da data de recebimento, para analisar os documentos. As restaurações deverão ocorrer em, no máximo, 12 meses, a contar da data de aprovação do projeto, com recursos dos municípios. A supervisão e a fiscalização das obras ficarão a cargo do Iphan, que deverá ainda expedir as orientações e recomendações de natureza técnica para as intervenções. Quem descumprir o acordo está sujeito a multa diária de um salário mínimo (R$ 465).

Minas Gerais tem 1,5 mil bens da extinta Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA). A maioria, segundo o coordenador das Promotorias de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, Marcos Paulo de Souza Miranda, está completamente abandonada. “As estações fizeram parte do cotidiano de muitas pessoas e foram largadas de forma abrupta. Ficou uma lacuna em vários locais. Muitos perderam a razão de ser com a retirada do transporte de passageiros, como as regiões de Barra Mansa (RJ), Lavras (Sul de Minas) e Miguel Burnier. Algumas povoações se transformaram em verdadeiras cidades fantasmas”, afirma.

Até agora, a responsabilidade sobre as estações foi transferida para 10 municípios. Há seis meses, foi assinado termo de compromisso também para a preservação de Mariano Procópio (distrito de Juiz de Fora, na Zona da Mata), Andrelândia (Sul de Minas), Conselheiro Mata (distrito de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha), Velho da Taipa (em Conceição do Pará, no Centro-Oeste do estado) e Uberaba (Triângulo). “O interessante é que não foi uma imposição. Todas as cidades que fazem parte do acordo quiseram e nos procuraram”, relata o promotor.

As cidades comemoram o repasse da gestão das estações às prefeituras. Em Congonhas, o processo de restauração da Lobo Leite promete ser simples, com a substituição de telhas e esquadrias, conserto de portas e janelas, uma vez que o imóvel não apresenta problemas estruturais, como trincas e rachaduras. O diretor de Patrimônio Histórico da cidade, Maurício Geraldo Vieira, ressalta a importância da iniciativa: “Reivindicávamos a estação havia muito tempo. É um espaço centralizado e chave para a prefeitura, que paga aluguel de posto de saúde e dos Correios. Queremos criar também um espaço no qual as pessoas podem ter cursos de dança e teatro, fazer uma horta e várias outras atividades que as façam se sentir parte desse patrimônio”, diz. 


Depois de registrada no livro do tombo, a estação de Miguel Burnier vai integrar um importante conjunto ferroviário. O secretário de Patrimônio e Desenvolvimento Urbano de Ouro Preto, Gabriel Gobbi, chama a atenção para o transporte. “No Brasil se discute muito a questão ferroviária e, por isso, é preciso pensar no meio ferroviário como algo maior no futuro. Além disso, é um bem cultural protegido e um local que pode ter alguma funcionalidade. Essas estações podem integrar um projeto com pontos de visitação cultural, no contexto da história do Brasil”, sugere



Resgate do coração de um povoado 

Foram tempos áureos aqueles em que a atração do pacato distrito de Miguel Burnier era fazer footing na estação, nos horários de chegada e partida dos trens, para paquerar as moças bonitas ou ficar de olho nos candidatos a marido. Há 40 anos, o principal meio de transporte eram as seis locomotivas diárias, com viagens para Belo Horizonte, Conselheiro Lafaiete (Região Central) e Ponte Nova (Zona da Mata) – bem diferente dos dois ônibus para Lafaiete e Itabirito, disponíveis atualmente. O último trem de passageiros circulou no lugarejo há 16 anos e, na época, fazia a linha para Mariana. Com o saudosismo, restaram as lembranças e histórias de moradores, como as do motorista Geraldo Magno Vasconcelos, de 68 anos, conhecido como “Tuia”.

Ele passou muitas horas boas da juventude na estação e consegue, mesmo diante de um imóvel destruído, sem janelas, com o piso comprometido, paredes mofadas e telhas quebradas, apontar o que funcionava em cada cômodo da casa: bar, armazém de carga, escritório de expedição, sala de espera de passageiros, do chefe da estação e a do telégrafo. Do lado de fora, resistem ainda restos do alojamento dos maquinistas, de funcionários da estação e dos chefes dos trens, da caixa-d’água da maria-fumaça, da conserva de vagões e da balança ferroviária (hoje transformada por moradores do entorno numa grande área para secar roupas). Uma passarela ligava o bar a outro boteco, do lado oposto dos trilhos, parada obrigatória para comer o famoso pão com linguiça.

“Viajei muito de trem, que era o único meio de transporte da região. Muita gente arrumou namorado e se casou na estação. Se for contar quantas vezes o pessoal andava no pátio, dá muitos quilômetros”, relembra Tuia. Depois de tantos anos de abandono, sonha em ver o espaço, inaugurado em 1887, revitalizado. O genro dele, Marco Antônio da Costa, participou ativamente do movimento para recuperar Miguel Burnier e, por isso, conhcece cada detalhe e fala com orgulho dos próximos passos. Ainda este mês, a prefeitura deverá pôr lona no teto e fechar portas e janelas com tapumes. “É difícil voltar o trem de passageiros, mas a restauração do lugar já é uma grande vitória.” 



Papel social terá destaque

A decadência e o abandono das estações de trem em Minas Gerais, processo consolidado com a privatização da rede ferroviária do país na década de 1990, deixaram marcas não apenas na estrutura física de imóveis, mas também um passivo social. Por isso, os termos de compromissos firmados com os municípios para proteção e conservação dos bens culturais ferroviários têm também o objetivo de recuperar o papel social dos imóveis.

Grande parte deles representa a memória cultural de vilas e municípios e, neste caso, manter as tradições significa garantir que gerações futuras tenham acesso à história do lugar no qual vivem. Na estação de Lassance, no Norte de Minas, será criado um complexo educativo, cultural e turístico que vai sediar a biblioteca e as secretarias de Cultura e Turismo. A área externa servirá para a difusão de atividades culturais e esportivas. O local é um exemplar arquitetônico construído no início do século 20. Foi inaugurado em 1908 e tem enorme relevância para o país, pois, durante sua passagem por Lassance, ela serviu de consultório ao médico sanitarista e cientista Carlos Chagas (1879-1934), quando descobriu a doença de Chagas, causada pelo Trypanosoma cruzi.

As estações de Chiador (Zona da Mata) e Campanha (Sul de Minas) também vão se tornar centros culturais. A primeira é a mais antiga do estado – foi inaugurada em 1869, em solenidade que contou com a presença do então imperador dom Pedro II. Os cuidados com Miguel Burnier, em Ouro Preto, ficarão a cargo de um agente público que more no distrito. A de Lobo Leite, em Congonhas, na Região Central do estado, será transformada em espaço multiuso, com salão para eventos e reuniões da comunidade e salas multimídia. O local vai abrigar ainda um ponto de apoio a turistas que passam pela Estrada Real.

 



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