Não há conflito entre
poderes, e tampouco intervenção de um na esfera de domínio do outro, diz juiz que estudou a PEC 33.
O Juiz
titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina, Reginaldo Melhado (foto), doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito
(Universidade de Barcelona/USP), professor da Universidade Estadual de Londrina
diz que a PEC nº 33/2011não tem nada de antidemocrático, não ofende a separação
dos Poderes, não macula o STF e nem tem qualquer relação, direta ou indireta,
com os processos criminais que passam na televisão.
Melhado coloca impressões
sobre três núcleos da PEC:
1. A emenda
institui quórum qualificado para a declaração de inconstitucionalidade pelos
tribunais. Com a PEC nº 33, seriam necessários quatro quintos dos membros da
Corte. Hoje, a Carta impõe apenas a maioria absoluta. No Supremo, a declaração
de inconstitucionalidade de uma lei pode ser decidida por seis a cinco. No
controle concentrado de constitucionalidade, isso significa, por exemplo, que
uma emenda constitucional aprovada por três quintos dos votos dos deputados e
senadores cai por terra com o voto de um juiz (ou seis juízes, se se
quiser). O atual sistema, portanto, deveria
mesmo ser aprimorado. Quatro quintos talvez seja muito (não no STF, mas nos
tribunais ou nos seus órgãos especiais). Mas a maioria absoluta, no STF, é
questionável.
2. A proposta de
emenda constitucional também trata da súmula vinculante. Estabelece que só
depois de aprovação pelo Congresso Nacional ela entra em vigor. Aqui se
levantam vozes vociferadoras: estaria o parlamento interferindo na atividade
jurisdicional, conspurcando o princípio da separação dos Poderes da República!
Com todo respeito, não há nada disso.
A proposta está
coerente com o que muitos juristas sempre sustentaram (inclusive os juízes da
AMB, Ajufe e Anamatra): na realidade, é a súmula vinculante quem viola a
separação dos poderes, amesquinhando o Legislativo: ela tem caráter normativo e
não jurisdicional. Embora se refira à validade, interpretação e eficácia de
normas jurídicas, a súmula vinculante caracteriza-se pela abstratividade,
generalidade, imperatividade e coercibilidade. Do ponto de vista ontológico,
ela não tem natureza jurisdicional. A súmula vinculante é norma jurídica, pois produz efeitos erga omnis ("eficácia contra todos e efeito vinculante").
Melhor seria acabar com ela. Dificultar sua aprovação não resolve o problema,
mas a PEC cria modelo insinuante. Infundir a legitimação do parlamento (mesmo o
congresso-picareta) na aprovação da súmula vinculante talvez corrija o pecado
original (no sentido de que o STF legisla,
não sendo poder legislativo). A proposta, aliás, devolve ao palco da política a
aprovação por decurso de prazo: não sendo apreciada pelo Congresso, em 90 dias,
a súmula vinculante entraria em vigor, sem mais delongas nem milongas.
3. O ponto mais
polêmico são as decisões do STF nas ações diretas de inconstitucionalidade: a
PEC também aqui cria um modelo curioso e sugestivo, que nada tem de autoritário
e haveria de ser ponderado de forma judiciosa. Ela estabelece que a decisão
declaratória de inconstitucionalidade do STF deve ser submetida de imediato à
chancela do Congresso. Se o parlamento (por 3/5 dos seus votos, em reunião
unicameral) se manifestar contra a decisão do STF, a matéria então seria
submetida à consulta popular. O eleitor, o povo, apareceria na cena política.
Novamente, aqui, bradam os juristas e jornalistas contra esse suposto ataque à
independência e à autonomia do Judiciário.
De novo, também
nesse ponto, a reflexão carece de análise crítica e profunda. Do ponto de vista
da filosofia jurídica, a proposta remete a uma discussão instigante: a natureza
da decisão do STF na declaração de inconstitucionalidade da lei. Para Hans
Kelsen – jurista insuspeito de militar a favor da esquerda totalitária e
corrupta –, o tribunal constitucional não exerce jurisdição, em sentido
técnico, ou ontológico, ao declarar a lei inconstitucional. Ele atua como
"legislador negativo". Tanto que, para o filósofo austríaco – pai do
positivismo jurídico –, o Tribunal Constitucional sequer integra o Poder
Judiciário e é formado por representantes da sociedade. Esse conceito, que não
é defendido apenas por Kelsen, influenciou o que muita gente chama de
"modelo europeu" (segundo o qual, a decisão da corte constitucional
não é declaratória e sim constitutiva. A lei tem vigência plena até ser
considerada inconstitucional, com efeitos ex
nunc).
Com efeito, ao
ser a matéria "devolvida" ao Congresso, não há conflito entre
poderes, e tampouco intervenção de um na esfera de domínio do outro. Na
realidade, o modelo criado na PEC nº 33 cria um sistema original, distinto dos
paradigmas norte-americano, europeu ou francês. Montesquieu provavelmente se
retorceu no túmulo, ao saber dessa ideia do legislador negativo devolver a bola
para o legislador positivo. Entretanto, se o problema é pensado sob a ótica do
sistema jurídico europeu, é o STF quem, ao declarar a inconstitucionalidade da
lei, foge às suas funções típicas de jurisdição e invade competência alheia. É
o judiciário interferindo no legislativo. A proposta de emenda constitucional
cria uma ferramenta curiosa e democrática de solução de eventual confronto
entre os dois poderes, ao remeter a questão à consulta do eleitor: a catálise
da soberania popular. Enquanto Montesquieu torceria o nariz, Locke e Rousseau
bateriam palmas.
Os juristas
conservadores, não. Um deles, aliás, chegou a sustentar que o povo não deve se
intrometer em discussões sobre a inconstitucionalidade das leis, por ser um
problema de higidez da tecnicalidade. Como se o sistema de direito positivo
fosse algo estranho ao mundo real, asséptico, infenso às inflexões políticas.
Como se a constituição não fosse um documento político. Como se na festa dos
juristas a consulta popular fosse um penetra, sempre obliterado na relação dos
convidados ao debate. Dos argumentos contrários à proposta, esse é sem dúvida o
mais simplista e condenável.
Como se vê, não
há na PEC nº 33 algo de totalitário, invasivo, canhestro. Não é um projeto
maravilhoso, mas sua originalidade e a relevância do tema sugerem que ele não
deveria ser discutido com tamanha superficialidade. Parodiando Dworkin, as
pessoas deveriam falar de direito seriamente. Ou, agora parodiando Habermas, o
processo comunicativo haveria de ser sincero e honesto.
Cabe ressaltar
que o juiz diz que não emprestaria seu apoio
às ideias da PEC nº 33. ¨Não sem antes um profundo diálogo democrático e um
sério aperfeiçoamento. Mas a maneira como o projeto e seu debate foram banidos
peremptoriamente pelos meios de comunicação revela como a mídia se tornou um
poder visceralmente totalitário e monolítico, para a infelicidade da nossa
claudicante construção democrática¨.