sábado, 11 de fevereiro de 2012

O trafego de pessoas para exploração sexual na Argentina começou na ditadura e se internacionalizou

Ante as ameaças de morte, Lorena considerou que sua única possibilidade de sobrevivência era colocar a boca no mundo e contar detalhes da máfia, que envolve delegados e juízes.

Lorena Martins, abrindo arquivo da máfia.
Lorena Martins nasceu em 1976, o ano do golpe militar na Argentina. Seu pai já era agente da Side (Secretaria de Inteligência do Estado). Nesse órgão, seguia e fotografava militantes que depois seriam sequestrados. Raúl Martins serviu ali de 1974 a 1987, quando se aposentou, quatro anos após o fim da ditadura. Passou para o ramo da prostituição, desenvolvendo uma rede de casas noturnas e apartamentos privados. Suas relações com a Polícia Federal e com o Poder Judiciário lhe permitiram ir tocando o negócio sem maiores problemas.
Em 1998, acusado por tráfico de pessoas, sofreu uma investigação judiciária, que não deu em nada. Mas depois do levante popular de 2001 a impunidade não era mais tão fácil de manter. Enviou sua família para a Espanha e, a partir de 2002, Raúl Martins estabeleceu domicílio no México.
Bienvenido a Tijuana
Foi, num primeiro momento, para Tijuana, onde conseguiu sócios. Martins entrava com as meninas, que mandava trazer da Argentina. Então, foi expandindo seus negócios para Cancún, sob proteção de funcionários do estado e do Zeta, cartel de narcotraficantes particularmente violento que opera em todo o território mexicano aterrorizando a população com cadáveres retalhados que aparecem em pleno centro das cidades.
Já morava em México quando casou novamente. Enquanto isso, sua filha Lorena se divorciou e voltou da Espanha para Buenos Aires, onde começou a trabalhar nos negócios do seu pai. Seja porque descobriu que as propriedades foram passando para a mão da nova família do seu pai, seja pela suspeita de ser seu pai quem mandou matar seu namorado, seja por ter tomado contato com vítimas do negócio, Lorena tomou distância de Raúl Martins. Ele a mandou chamar para o México para dissuadi-la. Foi em Cancún onde ela travou amizade com algumas das moças aliciadas pelo pai. E de lá voltou decidida a denunciá- lo.
Quebrar chicas
Lorena conseguiu o depoimento de uma das meninas aliciadas, Carla. É esse depoimento que explica o modus operandi da organização de tráfico de pessoas.
As moças são atraídas por um anúncio no jornal que oferece trabalho de garçonete ou de vendas. Na entrevista, são escolhidas aquelas que apresentam uma situação familiar e econômica mais vulnerável, e lhes oferecem a oportunidade de viajar para Cancún, para realizar serviços dentro do ramo do turismo. Já nessa cidade, seu passaporte é retido, sob o argumento de que devem a passagem. Começam trabalhando realmente como garçonetes. Mas logo são pressionadas a “ir de copas”, isto é, acompanhar os clientes para induzi-los a beber e assim receber uma comissão pelo consumo.
O passo seguinte é dançar. Para passar à prostituição só falta algo como um “batizado”. Em princípio, ela sabe que faz um programa na casa noturna. Mas a casa está fechada para alguns clientes “de confiança”, que podem ser 20. Ela toma um susto, quer retroceder, mas já não pode. É seviciada, golpeada e, a partir desse momento, já não pode opor resistência. Está “quebrada”. Esse verbo, “quebrar”, era usado nos campos de tortura e extermínio para falar do procedimento com os sequestrados, para obrigá- los a entregar informação.
A denúncia
Lorena voltou para Buenos Aires e radicou a denúncia junto ao Poder Judiciário. O processo foi sorteado, como é de praxe, e caiu nas mãos do juiz Norberto Oyarbide, amigo pessoal do seu pai. Ao mesmo tempo, dois agentes atuais da Side foram enviados ao seu domicílio para intimidá-la. Ela ligou para o chefe deles, que havia sido colega do seu pai e a conhecia desde sempre.
Ante as ameaças de morte, ela considerou que sua única possibilidade de sobrevivência era colocar a boca no mundo. Os grandes meios de comunicação não acolheriam suas denúncias. Precisava aproveitar a tensão entre o governo federal e o prefeito de Buenos Aires, principal expoente da oposição e beneficiado pelas contribuições de campanha do seu pai.
Dirigiu-se aos meios favoráveis ao governo federal, com a convicção de que divulgariam sua denúncia. Já faz um mês que Lorena começou uma corrida contra o tempo. É urgente para ela relatar tudo, informar todos os nomes, todos os implicados. Se falar 99% do que sabe, arrisca a ser morta para que não revele o 1% restante.
Precisa tornar inútil a queima de arquivo. Ela tem consciência disso e não deixa uma minúcia fora. Descreve até os planos das casas noturnas em Buenos Aires. Fala das paredes falsas que comunicam com casas vizinhas, em nome de testas de ferro, para evitar flagrantes. Fala e apresenta provas do acerto mensal de 8 mil dólares para as delegacias da Polícia Federal com atuação nos bairros onde estão localizadas as casas noturnas e para os órgãos responsáveis pela fiscalização.
Segredo e ocultamento
Lorena Martins se recusa a declarar perante o juiz Oyarbide, pela amizade que este cultiva por décadas com o acusado. Mas antes mesmo da sua declaração, e como resultado da divulgação nas mídias, já foi afastado e investigado um delegado da Polícia Federal, que se soma aos 21 já afastados por vínculos com a rede de exploração sexual.
O aparato do Estado, assim como a delinquência, baseia seu funcionamento no segredo, no ocultamento. O poder popular, ao contrário, baseia seu funcionamento na máxima transparência. Algumas vezes, um Estado não consegue manter o segredo. Destrói assim a especialização, o poder que gera a exclusividade do conhecimento.
No caso do combate ao tráfico de pessoas, seja para trabalho escravo, seja para exploração sexual, o segredo se revela inócuo, uma vez que permite a corrupção dos funcionários e a “contaminação” do Estado com o delito. O “escrache”, a exposição pública dos implicados, foi a primeira arma dos movimentos populares para levar para a cadeia os torturadores dos campos de extermínio na Argentina. É um bom instrumento para derrotar o trabalho escravo e o tráfico para exploração sexual.
Silvia Beatriz Adoue é professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (Enff) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Araraquara.

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